Estes percorreres por aí à balda,
nestes saudosos antigos eus.
Qual deles deixei no meio da estrada e em que sombra,
me perseguem até onde sou?
(Do poema "Corte em mim, João W. Nery)
“Não julgueis um livro pela capa!” É quase um corolário não julgar. É quase silenciadora a linha divisória que separa os reflexos opostos de João e Joana na capa do Livro Viagem Solitária – memórias de um transexual trinta anos depois – de João W. Nery.
Não julgue o livro como apenas um testemunho comum, pois ele é pura fantasia. É a fantasia de Joana sentindo-se Zeca, ou quando já o homem formado, João, fantasia o mundo real – vez que o constructo do mundo real é fantasia plasmada num artefato que nunca será nosso. Estamos sempre nos encaixando no mundo dos Outros. João tentou escapar da fantasia. E em busca por uma comunidade imaginada, o tempo soube, inteligentemente, decantar sua alma na realidade que sempre lhe fora real.
Viagem Solitária está além do testemunho porque não fica no eu diegético conspiratório de sua sorte. Ele entra na poesia; nas epígrafes iluminadoras; nas mulheres salva-vidas; na coragem do não-anonimato; na delicadeza do ser. Quiseram ficcionado seu relato como se fosse uma experiência fantasticamente única, isolada; e somente na criação quixotesca de seu sonho ele poderia sobreviver. Mas foi além, além do que se pode gendrar no resumo ontológico de uma condição masculina; nem mesmo na centralização falo-imaginada, pois seu sexo estava além do corpóreo, do imagético.
E como é libertador encontrar-se fora do exigido e fazer disso um primado teleológico de sua vida. A experiência de ser um leitor deste testemunho é poder enxergar a si além do que pretendíamos sempre ser. E que sempre estaremos incompletos. Mas ler Viagem Solitária é adentrar num mundo de incompletudes até saber-se que sempre seremos uma lacuna personificada. No entanto, João W. Nery vai preenchendo sua vagina desconstruída com o conhecimento de si e da negação do que não entendia o porquê.
“Devido a esta absurda defasagem entre minha autoimagem e a que faziam de mim, descobri, quase que instintivamente, que na fantasia estaria a gratificação de ser reconhecido. Considero essa solução a balsa salva-vidas com a qual consegui sobreviver a tantos desencontros. Delineadas pelas minhas necessidades vitais, moldei-a de uma forma que podia adaptá-la à realidade.” (NERY, 2011,p.35-36)
A infância é sempre uma fonte de descobertas e fantasias e assim, a priori, por meio dessas pequenas mitologias internas é que João se salvava dos perigos do gênero imposto. A consciência e externalização da representatividade Maria-homem o assustava. Tinha a Maria (Joana), mas o homem João ainda era um devir.
A leitura se perfaz num constante desconstruir e construir, erigindo uma imagem metamorfoseada. Apenas o tempo e a paternidade – mais tarde, em certo ponto, infelizmente, a velhice – tornariam João no verdadeiro homem que inventamos.
Não queria falar de sofrimentos, tampouco de como fui instigado a ler o livro para descobrir como se construiu o falo mágico de João – a estatização do ser homem. Pura fantasia minha, eis que o homem em João, sempre houve, sempre existiu. Decepcionei-me comigo mesmo. Mas de forma alguma essa curiosidade ofuscou o brilhantismo na poética-testemunho de João W. Nery. A alma do poeta não poderia se desvencilhar do narrador.
O eu narrativo escolhera o masculino. Estava convencido, em todos os momentos, de que nunca existira a Joana – senão na memória afetiva dos outros – e não soava provocativo, ou revanchista, tampouco autoafirmativo. Era uma voz de escritura singular, de um homem construído no desejo de ser o que queria ser. Eu não mais procurava o famigerado falo mágico. Demovi-me da experiência da curiosidade para adentrar o mundo dele; assumir o papel do Outro, dele mesmo.
Outra leitura, assim, recomeça. A leitura de um homem João, que ultrapassou minhas expectativas como leitor medíocre, buscando uma fórmula para entender, finalmente, o desejo dele. Deparei-me com um homem maduro e que coincidiu com a última parte do livro: Paternidade.
Mas não convém atribuir os papeis sociais já construídos pela nossa sociedade heteronormativa-judaica-cristã. A forçosa idéia a que somos conduzidos para confeccionar o homem sob os pressupostos do imperialismo dos gêneros, do binarismo, do maniqueísmo suicida. Pai aqui tem conotação outra, sob o esteio de uma psicologia inclusiva, aberta; de um olhar menos parental, sanguíneo ou genético. A adoção do seu filho tem ares de redenção, de reconhecimento, mas acima de tudo, o sentido heróico e materno de ser pai.
Enfim, a leitura de Viagem Solitária de João W. Nery nos permite concluir que não é uma viagem solitária: não viajamos sós, não estamos sós. Há nesse nosso tortuoso jeito de ser, uma legião de indivíduos ou comunidades mais do que imaginadas que possuem os mesmos anseios apagados; os mesmos medos avolumados; os mesmos sonhos não acalentados; a mesma incompreensão cristã. Porém, no final, todos resistem sempre por existirem histórias de perseverança e, sobretudo, coragem de permanecer lutando.