Um ser frágil

As moscas, pobres seres vulneráveis, afastavam-se de mim. Minhas inúmeras investidas e golpes que tentavam acertá-las ensinavam-me a temer mais minha condição de presa. Insistiam em dividir o banho comigo. Às vezes, distantes, permaneciam sem demonstrar sinal de vida. Desconheciam minha condição vulnerável e ignoravam minha frágil existência, talvez tão vulnerável quanto a delas. Minha vida poderia se acabar com apenas o enunciado de algumas palavras. E, como elas, poderia eu ficar prostrado, aguardando a mudança natural do ritmo das coisas que não conseguia controlar. Tudo ao meu desfavor. Então permaneceria estático como as moscas numa espera de mudança, de uma nova investida, agora, de quem sobre quem?

De fato algumas ideias ruins sumiam por entre as frestas do ralo. As moscas paradas, o som pesado das águas sobre minha cabeça, as ideias vinham e eu tentava observá-las ao mesmo tempo. Meus pensamentos se concentravam em grandes feixes luminosos que apareciam entre os meus dedos e corriam por entre as juntas dos azulejos que me alertavam das moscas suicidas. Seres frágeis? Quem? Num momento de trégua ou de autocuidado, deixava que elas dividissem o banho comigo, embora tudo pudesse acabar com um único golpe. Então tudo se decantaria no fundo do ralo. Eu queria parar com a observação excessiva e silenciosa sobre as moscas, da água sobre minha cabeça e do ralo.

De repente, eu mudo a perspectiva e deixo que as drosófilas tenham um ponto de vista: a água divertindo suas investidas rasantes, as gotas se fragmentado com meus murros e a diversão suicida delas com o meu desespero. Para elas, apenas a água e, às vezes, algumas delas sumiam pelo ralo. De volta, a minha perspectiva, eu via partes de meu corpo se esvaírem por entre os dedos, correndo os vincos dos azulejos e descendo por entre as frestas do ralo. Eu me derretia a partir de cada gota d’água na minha cabeça.

Então, restaram apenas algumas fortes moscas… e minhas ideias loucas dividindo espaço com elas.

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