Mais uma carta de morte

Li uma carta suicida recente:

Estou deixando esta carta, porque todo mundo tem ou deixará uma carta de morte. A morte é um alívio, alguns dizem ser um mistério.

Eu não caibo mais nesta ideia de nação. Estou há anos imaginando uma terra prometida. Onde eu e as minhas pudéssemos viver sem que ter a regência das nossas vidas sendo produzidas por esta Economia.

Eu não vejo assim. Já entendi que a morte pra mim é um delírio. Mas não porque ele não exista, mas porque o Estado só me deu esta alternativa para viver. Este Estado está, na verdade, me deixando morrer. Todos me veem como louca. Meu corpo não cabe no ritmo da produção. Meu corpo não produz o tempo todo. Eu parei de resistir. Justamente por saber o porquê, eu aceito o delírio opressor.

Eu sou uma deficiente. Aos olhos de todos, eu tenho deficiências. E o mundo não é para mim. Eu tenho um corpo diferente. Vocês sabem como é meu corpo. Ninguém se importa com ele. Não tenho acesso. Não preciso dizer mais nada.

Então, voltando a minha carta de morte, são poucas as lembranças bonitas. Meu tempo de vida futuro se fragmenta na minha mente deprimida que não consegue mais ver futuro. Sou uma corpa alienada (já não tenho poder sobre ela). Mas eu não quero suicídio, embora esta carta é de morte.

Na verdade, eu fui suicidado, como Prometeu com o fígado esfolado todo dia. Ontem, o recrutador me perguntou: Como você se vê no futuro?

Eu queria estar com as minhas, numa casa, talvez própria, talvez um cachorro, um emprego que me pague dinheiro para eu me alimentar bem, usar roupas novas, poder transitar sem risco na esquina da cidade onde me escondo hoje em dia.

O recrutador pediu para que eu não falasse de sonhos. E então eu disse, eu não vivo senão em meu sonho. Eu paro o meu dia para sonhar. Meu tempo já não tem tempo e aí eu pressinto a morte. Por isso, eu resolvi escrever para dizer que não vivi muito e a morte parece a única possibilidade. Quisera eu ter uma ideologia de reencarnação, não para expiar pecados, mas para viver uma vida mais longa, algo que me desse um saber sobre a morte. Não. Não quero eternidade, quero terceira idade, vez que do jeito que ando nem chego nos 36.

Eu culpo a Economia, que me tem destruído corporalmente, epistemologicamente (palavra bonita que aprendi para falar do que gera conhecimento). Sim, a Economia me destrói lentamente, já não consigo produzir enquanto vivo, nem em sonho. Meu sonho é estéril, já estou gastando minha memória e minha criatividade. Eu não tenho mais um farol. Quero as minhas, não os meus, sou sem gênero, mas quero as minhas. Onde estão as minhas memórias? Reverbera o que você quer ser quando crescer? Como você se vê daqui a 10 anos?

“Você tá bem?”. Todo mundo me pergunta. Mas não é porque se preocupam, é porque meu corpo parece doente, moribundo. “Você tá sonhando Hillary?”. Não parece que vivo mais minha vida agora. Descobriram que o meu sonho também está morrendo.

Aí, eu quero escrever minha carta da morte. Freud disse que todo mundo tem uma carta da morte. Mas não deixe meu ser de fala morrer. Têm um monte de papel que escrevi. Guarde todos eles na sua gaveta. E quando tiver o tempo certo, lá quando a memória te falhar, abre a gaveta novamente e lembra de mim.

Diga-se de passagem, que não desisti, o que morre é a imagem que os outros tinham de mim!

De uma autoimagem de Hillary

Bisous

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