Os gays poderão casar e daí?

Os gays poderão casar e daí?

 

A pergunta não me incomoda, mas incomoda o vizinho do lado porque talvez, daqui a alguns dias um casal gay poderá morar na vizinhança. E meus os filhos, ele se perguntava? E se algum dia esses casais se abraçassem, trocassem afetos, em frente de nossas casas – este vizinho perguntaria novamente – e se se beijassem loucamente?

 

O medo dele é do carinho, do afeto, da existência do amor entre os homens. Este vizinho não se lembra de como era bom o carinho de seu pai, o beijo no seu rosto, os abraços dos irmãos – ou talvez não tenha reconhecido o amor. “Mas ninguém transa com irmãos, pai”, diria este homem já formado. Bem, de fato, o argumento é raso e pífio para aqueles que não entendem o carinho. O que importa é que nos amoldemos aos valores e convenções da sociedade sob o primado heterossexual e patriarcalista freudiano. Mas todos sabemos que a sociedade é dinâmica. Ela é impulsionada para o além, para uma situação equilibrada, na qual direitos e deveres se compensem na medida certa das necessidades individualistas, mas não egoístas. Essas necessidades individuais sempre são resolvidas as portas da Justiça que não deve se silenciar diante da desigualdade de direitos pela qual essencialmente comprometeu-se lutar. Mas o que tem a ver minha dor particular com Justiça?

 

O vizinho ainda resmunga diante da possibilidade da decisão histórica. Ele se assusta a cada voto favorável, como se, no seu radinho de pilha, ouvisse o anúncio de o bombardeio inimigo alcançar a soleira de sua casa. O medo se converte em preconceito, na sua mais íntima definição. Um voto a mais é dado, explicado sob a mais rigorosa técnica jurídica, emanada de exímio operador do direito. A notícia que ele não quer ouvir colocará o Estado em pé de igualdade- e na vanguarda- com países que há mais de dez anos consideram o convívio harmônico entre casais gays uma realidade. Mas qual é seu medo?

 

Não passa de uma ideia arraigada que perpetua um pensamento anacrônico e sem sentido hoje em dia. Deve-se compreender o pensamento desse senhor e até permitir que ele exista, pois senão estaríamos inventando outra ditadura, outra moda. Mas antes fosse uma questão de forças; esta luta se trata de direitos, igualdade. Antes era o poder da força, do Homem. Hoje ele está mitigado. O que é o homem? A questão do gênero mudou. A sexualidade pode ser vivida sem traumas, sem adesivos que abafem o grito. Foi-se este tempo. Nossa rebeldia sem causa de hoje é a luta por direitos iguais. E tentem vislumbrar como a questão simples da igualdade pode redundar em outras e inimagináveis constantes mudanças para o bem. Não precisa ir longe. A igualdade celebra a vida e a paz.

 

E quanto a eu e meu companheiro por que precisamos sustentar a manutenção deste direito? Os outros não vivem nesse questionamento. É normal que os outros vivam, construam suas vidas, casem – mesmo que não venham a ter filhos –, troquem os devidos afetos e os indevidos. E quanto a mim, fico adstrito ao talante da lei que me diz que afeto e existência não garantem a união civil, somente ao homem e a mulher. O que é homem e mulher senão constructos da sociedade, e que hoje se move sobre uma plêiade de possibilidades e invenções? Como não dizer que é o afeto e a existência que impingem o grau da união.

 

O Estado é laico. Adão e Eva. Incompatibilidades vão sendo deduzidas, espalhadas como se fossem uma verdade, como se um livro de histórias inventadas fosse o limite das nossas esperanças. A lei maior é evocada para não dar direitos, para expurgar e ainda mais discriminar o amor homossexual. Como ainda podemos viver nessa bolha de idiossincrasias, se Justiça tem a ver com o povo de uma nação? A voz abafada de uma minoria deveria ser desconsiderada em detrimento de uma metafísica teológica, arcaica, vencida e altamente sujeita a interpretação disvirtuante? Essas questões não se misturam quando Direito e evocação de leis divinas – ainda que promovam a probidade –, são utilizadas com o mesmo peso. Interpretações a esta última podem ser sempre deturpadas. E como deveremos nos portar: na retidão da lei que nos protege ou nos caminhos tortuosos de uma lei que pode para mim, sim, ser desprezada?

 

Mas o senhor do radinho não contempla a lei erga omnis que deve olhar – tirar a venda e enxergar os erros ­– para reparar as deficiências da lei maior (a Constituição Federal) em relação à igualdade de direitos como escopo do Estado. Posso falar do Art.5º e usar como escudo, mas falaria de algo maior, o afeto. Promover o bem de todos (Art. 3º), o que é isso? É a garantia da integração comunitária, da civilidade entre os concidadãos, da fraternidade, dos direitos da mulher, dos negros, de um pluralismo harmônico. Estamos prontos para ser invadidos por alienígenas mais avançados? Estamos prontos para ensinar nossos filhos sobre civilidade e humanismo? Estamos prontos para “amar aos outros assim como vos amei?”

 

Vedação ao preconceito. Sexo? “Não se é mais digno pelo fato de se ter nascido homem ou mulher.”- palavras do Ministro Ayres Britto, que ouço no meu radinho avançado, como aula substancial sobre o que tenho aprendido sobre Direito e sobre humanismo. Agora me lembro do princípio da proporcionalidade: a balança pende para os heteroafetivos (como quer o ministro) no quesito de que possam viver tranquilos com suas famílias. O que é família? Eu me pergunto o tanto que as coisas mudaram e nós não mudamos!

 

Somos pessoas e isso resolve muita das dissensões num plano menos jurídico e mais humano, deixando de lado quaisquer idiossincrasias, credo, paixão. Somos além de tudo e além do mais, seres humanos. E não quero me sustentar nos moldes da Constituição, deixar aqui este texto derramar sobre um teor técnico, uma leitura enfadonha, procurando evidenciar o silencio embutido nas entrelinhas da lei. Mas posso falar do Direito limpo, claro, sem deturpações, no Art. 5º da CF. A liberdade, os princípios fundamentais, os tratados bilaterais, multilaterais, todos corroboram nossa vontade, a simples vontade socrática: conhece-te ti mesmo. Este mover, este impulso é individual, mas não torna o novo desconhecido um pretexto para a exclusão.

 

Não quero ir longe, mas debaixo de minha axila, carrego meu livro preferido que me assegura a minha existência e meu afeto, minha liberdade, como uso meu equipamento sexual, como devo me portar diante do Outro, como devo pagar as contas, como devo proceder para atingir minha felicidade. Eu não preciso do aplauso, da apologia ou do louvor, o que preciso é de respeito.

 

E o que precisa o vizinho ao pé do rádio? Ele precisa de Lei. A Lei o mostrará que o preconceito é que é a bomba que está ainda por cair e explodir – se ela já não foi detonada. Ele precisa de um banho de realidade, mas não como uma imposição da lei, mas por uma compreensão natural de que a nação é constituída de cidadãos com garantias de direitos e deveres.

 

E quanto ao casal de vizinho gay? Eles merecem numa linguagem técnica, tratamento isonômico, dignidade e numa linguagem bem rasteira, eles precisam viver ipsis literis como vivem os outros.

 

P.S. Inspirações em meio a decisão do STF em relação à União Homoafetiva. Inspiração também oriunda das lindas e tecnicamente poéticas do Ministro Ayres Britto.

Brasília 04/05/2011

3 comentários em “Os gays poderão casar e daí?

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